O Cego

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Ela tocava piano…

E tocava com tal emoção

que cada acorde me chegava aos ouvidos

tão pleno e perfumado de sentido

que tocava, de leve, o coração.

 

Eu sentia o seu sorriso,

embora ela talvez nem estivesse sorrindo…

E percorri, ao som daquela melodia,

mil riachos, montanhas; às luzes da noite e do dia…

 

Uma lágrima correu no meu rosto…

Ah! Sim; meus olhos; do pouco que me trazem imagens,

refletem fiéis meu riso e meu choro;

ensinam meu coração a me guiar, ir pelas margens.

 

Dois passos para lá, mais cinco para cá e… A trombada!

Uma bandeja vai ao chão; as taças quebradas…

A voz jovem ensaia um choro e logo se cala…

 

Era uma festa! Quem podia chorar em tal evento?

Eu sim. Diante de tal embaraço, duas lágrimas molharam meus olhos.

A bandeja ao chão, os cacos de cristal caro, e eu tateando…

Dois corpos surgem do nada e quase me atiram aos cacos.

 

Começo a sentir os olhares; ouço murmúrios; nenhuma mão amiga…

De repente, a pergunta: As taças! Quebraram muitas?

Uma voz estridente, tão fútil quanto a pergunta; uma voz vazia.

Voz de alguém que via e na verdade não via nada…

 

Um aroma doce ardentemente feminino

mudou a direção do meu rosto.

Perfume suave, de bom gosto,

e passos de salto, não muito fino…

E, enfim, a mão pequena com anéis delicados; o tipo romântico.

A voz, ainda mais doce que o perfume: Senhor, posso ajudá-lo?

 

Que privilégio ouvir de um estranho uma oferta tão sincera!

Que presente suave perceber tudo isso em uma presença feminina…

Que bom ser um cego, em pé, parado,

sem saber que direção seguir,

e logo ser acarinhado

com uma voz de respeito inocente,

de quem sabe que ser gente

não depende de ver, ouvir,

ou ter um corpo em perfeito  estado. 

 

Voz de quem vê e sente o que está vendo e age porque sente, não por ser certo ou errado, importante ou supérfluo.

Uma mão pequena que há de caber nela muitas coisas, porque saberá o momento de abrir e fechar…

E é assim que eu me penso, me sinto, me alimento de novas dádivas e conquistas a cada dia… 

Eu vou cego sim. Mas vou; ouvindo, tateando, sentindo, amando, amando a vida. Chorando, rindo; com derrotas e com vitórias; mas vou; e quero não ficar parado esperando mil glórias que moram bem dentro de mim, naquele lugar onde o que se vê é um vazio e o que se sente são possibilidades. Eu, que sei que do nada sempre pode surgir algo, ou haver já algo que não sei onde está, sei que a minha vida não cessará de mudar e os obstáculos não irão me impedir, uma vez que o maior deles eu já transpus: Sou o que sou; simplesmente sou; e é com o que tenho que busco e cultivo a minha felicidade, a cada dia, pois meu coração e meu corpo têm visto bem mais que muitos olhos… 

Fabiana Botelho